As telas fazem parte da nossa vida, e é impressionante como precisamos delas para quase tudo hoje em dia. Vivemos uma relação de amor e ódio com as telas, uma espécie de dependência, de vício. A internet e as telas são úteis para comprar, para a comunicação, para ver notícias, entretenimento e diversão, para aprender e ensinar, para consultas médicas, para transferir dinheiro. Mas, quando a tecnologia não funciona, ficamos aborrecidos ou irritados. Não podemos mais viver sem as tecnologias, estamos num caminho sem volta. Será que é exagero? Vamos falar sobre isso?
95% das crianças brasileiras acessam a internet.
9% das crianças de 9 a 17 anos já viram vídeos pornográficos.
Crianças e as telas
Que a tecnologia facilitou a nossa vida todos concordamos, e não vivemos mais sem um celular, sem o computador. Mas a grande e brilhante promessa era que íamos ter mais tempo livre. Sabe o que é isso? Puro engano. O trabalho nos engole até tarde da noite e nos encontra até mesmo nas férias.
Substituímos velhos e bons hábitos pelo caminho fácil da recompensa porque acabou a dificuldade. Sim, o nosso cérebro ficou acostumado e deslumbrado com a rapidez da informação, da conclusão, do prazer e da recompensa. Além disso, a tecnologia tem grande influência sobre os nossos comportamentos. O Google ouve a nossa voz para nos recomendar produtos. O algoritmo das redes sociais é quem decide o que você vai assistir, concordar, comentar, consumir, amar ou odiar. Sem a devida crítica do que estamos vendo, sucumbimos.
Mas, e as crianças? Como ficam no meio de tudo isso? Eu ia mesmo falar delas!
As crianças nascidas a partir de 2010 são a geração alfa, são os nativos digitais. Se eu posso contar histórias de como eu tinha que ir ao banco para tirar dinheiro, essas crianças já não vêem mais o dinheiro físico, elas dizem para a mãe que para comprar o brinquedo não precisa de dinheiro, é só “passar o cartão”.
Um bebê de 1 ou 2 anos já usa seus dedinhos para rolar a tela e para ampliar a imagem pequena para ver melhor. O celular pode ser um perigo nas mãos de um bebê, pois ele pode mandar seus vídeos suspeitos para seu chefe, ou deletar alguns contatos importantes, ou mandar áudios incompreensíveis no zap da família.
Se a tecnologia influencia os adultos, imagine as crianças. E as crianças não são o futuro, elas estão aqui, agora, elas vivem nesse mundo de agora – o mesmo que a gente vive. Mas elas verão com seus olhinhos muito mais avanços do que nós vimos quando assistíamos “Os Jetsons” no século passado.
Alguns números
- Há registros de que 95% das crianças brasileiras acessam a internet. De acordo com o PNAD/IBGE, em 2022, 161,6 milhões de brasileiros com 10 anos ou mais utilizaram a Internet.
- A pesquisa TIC KIDS ONLINE – Brasil (2018), que entrevistou 2.964 crianças e adolescentes brasileiros entre 9 e 17 anos, mostrou que 86% estão conectados à Internet, o que corresponde a 24,3 milhões de usuários.
- O uso excessivo é demonstrado por 21% dessas crianças e adolescentes, que deixaram de comer ou dormir por causa da Internet, e 26% deles responderam que passaram menos tempo do que deviam com a família, amigos ou fazendo as tarefas escolares.
- Para crianças de 2 a 8 anos de idade, o consumo médio é de cerca de três horas por dia. Entre 8 e 12 anos, a média diária gira em torno de cinco horas. Na adolescência, esse número sobe para quase sete horas, o que significa mais de 2.400 horas por ano, em plena fase de desenvolvimento intelectual. Esses números nos preocupam.
Elas estão no Google, YouTube, Instagram, Facebook, TikTok, X, plataformas de jogos, como Twitch, Discord, entre outros. Elas já têm os seus youtubers e streamers favoritos, e já viram várias séries da Netflix, enquanto a gente só paga os boletos e não consegue escolher um filme que nos agrade. Para ter um perfil em rede social, a idade mínima exigida é de 13 anos. Só que muitas crianças pequenas já estão lá. E sabe como? Com a nossa permissão. Mas você sabia que os grandes executivos de tecnologia não deixam que seus filhos acessem as redes sociais? Pois é, eles sabem dos perigos.
Vale repetir: as crianças estão aqui e agora, não estão lá no futuro distante e imaginário. Enquanto você está aqui lendo esse artigo, uma criança pode estar vendo vídeos pornográficos no celular de última geração que ela ganhou de Natal.
Exagero? Não estou exagerando, a gravidade é emergente e evidente. Num piscar de olhos estamos sendo negligentes. Se, antes, o perigo era brincar na rua, agora o perigo está dentro do quarto, na palma da mão. Sim, 9% das crianças de 9 a 17 anos já viram vídeos pornográficos. Lembram do desafio da Baleia Azul, do balde de gelo, do jogo da asfixia? As crianças são suscetíveis, elas não têm defesas. Pode ser que muitos aqui acompanhem e orientem seus filhos, e isso é muito positivo, mas é preciso estarmos muito atentos, e tomarmos consciência, olharmos para essa questão, para a nossa proteção e dos nossos filhos.
Os perigos do exagero
Especificamente, quais são os perigos do uso das telas e tecnologias pelas crianças e adolescentes? Dentre muitos, podemos citar alguns:
- o desperdício do tempo e falha em realizar outras atividades
- menos movimento em atividades físicas e de lazer
- acesso a vídeos e conteúdos impróprios para a idade
- acesso à violência através das redes sociais
- exposição ao cyberbullying.
- Exposição ao preconceito e aos discursos de ódio e ameaças diversas
- sexting (mostrar ou manipular imagens com objetivo sexual)
- sharenting (quando os pais expõem os seus filhos nas redes)
- manipulação, golpes, estímulo ao consumo
- prejuízo à imagem corporal, à autoestima
- a tal da síndrome “FOMO” (“fear of mission out”, ou medo de ficar de fora),
- desafios e brincadeiras perigosas que podem causar fatalidades,
- vício (pela dopamina liberada com o rolar das telas),
- dependência de jogos eletrônicos (que a Organização Mundial da Saúde já classificou como doença, gaming disorder),
- ansiedade, depressão, falta de concentração,
- linguagem imprópria, palavrões,
- banalização da violência e da morte,
- aliciamento de menores para o mercado da pedofilia,
- constrangimento, assédio moral, sexual e fake news.
Crianças pequenas podem apresentar prejuízo no desenvolvimento da fala e da motricidade se forem expostas às telas, e por isso não se recomenda acesso às telas antes dos dois anos de idade. Dos 2 aos 5 anos, recomenda-se 1 hora por dia; dos 6 aos 10 anos, recomenda-se um limite de 2 horas por dia, e na adolescência, 2 a 3 horas por dia apenas. Mas acho que estamos bem distantes disso.
As crianças podem começar a apresentar mudanças de comportamento, como irritabilidade, estado sempre acelerado, queda do rendimento escolar, alta excitação, alterações oculares (é relatado um aumento de casos de miopia), alterações do sono, tiques, ou mesmo apatia e parada no desenvolvimento. A exposição à radiação emitida das redes wireless pode causar dor de cabeça, alterações do humor, do sono, concentração, alterações visuais. Isso sem falar na poluição ambiental pelo descarte incorreto e excessivo de componentes eletrônicos. E a lista continua. Ao final do texto você encontra várias sugestões de leitura.
A SBP já alertou sobre a emergência da dependência digital e a possível causalidade de atos de violência decorrentes do excesso de jogos e telas, e tem recomendações específicas para os pais lidarem com os filhos e as telas (veja link no fim da página).
O Dr. Michel Desmurget, pesquisador francês, afirma que, pela primeira vez na história, nos países desenvolvidos, uma geração terá quociente de inteligência menor do que os seus pais. As telas são muito estimulantes, e afetam o cérebro em desenvolvimento. A Dra.Victoria Dunckley, psiquiatra integrativa infantil estadunidense, descreveu esses estados como uma síndrome: a síndrome da tela eletrônica, e propôs um programa para recuperação das crianças, com um verdadeiro detox digital, e descreve esse método no livro “Reset your child’s brain” (Dê um reset no cérebro da sua criança).
O poder das telas sobre nós
Parece um quadro bem trágico, e na realidade é mesmo. De uma maneira geral, a infância tem pouca importância na nossa sociedade, as leis de proteção à infância são muito jovens, e sua aplicação ainda merece mais robustez. Nós ignoramos como os hábitos que nós não tínhamos quando crianças influenciam os nossos filhos, e não sabemos lidar com o novo.
Por exemplo, usamos o celular como moeda de castigo, não conversamos com os filhos sobre o seu uso e não controlamos o acesso a ele de uma forma saudável. Quando usamos a nossa pressuposta sabedoria absoluta com arrogância para tratar desses assuntos, travamos o diálogo e impedimos a proteção de todos. Além disso, as redes sociais, por exemplo, não têm regulamentação específica e não têm responsabilidade sobre o conteúdo que é colocado lá.
E por que temos que dimensionar o poder que a tecnologia tem sobre nós e nossas crianças?
A grande questão é o modus operandi. Falo de como a tecnologia influencia os nossos comportamentos, da nossa cultura da rapidez, do consumo, do imediatismo e dos influencers. O uso excessivo das tecnologias – sejam telas, jogos, TV, redes sociais – modificam o nosso comportamento e nos afastam de nossa humanidade. Nós humanos fomos programados para termos conexões entre nós: conversar, ter compaixão, empatia, ouvir e falar, sentir, perceber o estado do outro, olhar olho no olho, chorar junto, rir e principalmente amar. As telas nos remetem a um mundo externo a nós, e não estamos percebendo. Podemos estar afastados de Deus, de nossos queridos, e de nós mesmos. A nossa sociedade foi invadida com tanta energia e velocidade por esse novo modo de viver, acelerado, conectado, que estamos priorizando as telas em detrimento das conexões humanas. E a meu ver, esse é o maior problema.
E as crianças fazem o que nós fazemos, e não o que nós falamos. Em geral estamos muito bravos para sermos ouvidos.
Estamos permitindo que essa influência seja prejudicial, nos atrapalhe, nos afaste, nos adoeça! Sim, estamos adoecendo por causa das telas, e nossos filhos também. As crianças são diferentes de nós, e sofrem um perigo maior. Devido à sua imaturidade cerebral, elas não têm capacidade de discernimento e não conseguem fazer escolhas saudáveis para regular o conteúdo e o tempo de uso das telas, da internet e das redes.
O que fazer para mudar?
Então, se o problema maior é a mudança de comportamentos e o prejuízo dos relacionamentos, o que fazer para mudar este cenário?
Primeiro, eu sugiro que a gente não fique preso à culpa e ao medo, pois eles não vão nos ajudar, eles não jogam no mesmo time da solução dos problemas. Eu sugiro uma tomada de consciência, acompanhada de amor, humildade e conhecimento. Auto responsabilidade. Estudar, ouvir, ler, entender o problema, buscar informação do novo, do desconhecido.
A educação dos filhos passa pelo respeito e pelo diálogo, mas a responsabilidade é sempre dos pais e cuidadores. O uso da tecnologia pelas crianças e adolescentes é de extrema importância e urgência, e deve ser incluído no conjunto dos outros temas da parentalidade.
O mais importante é estabelecer para si mesmo quem decide a qualidade, o conteúdo e o tempo de telas que os seus filhos vão acessar: eu mesmo, pai e mãe. A gente não decide se eles vão poder ir na casa dos amigos, ou na festa, ou na viagem de formatura? Aqui é a mesma coisa. É lógico que não conseguimos fazer isso 100% do tempo e das vezes. Mas eu recomendo que você assuma essa função, que não se intimide, não se esquive. Muitos pais ficam amedrontados, às vezes paralisados, mas a saúde dos seus filhos agradece, e a sociedade também. Se a criança tem orientação e controle desde pequena, vai ser mais responsável quando adolescente e adulta. Mas vale lembrar que temos que deixar a porta aberta, o diálogo acessível, porque, se a criança confessar algo que fez errado, ou alguma ameaça que sofreu, ela não deve ser punida, mas deve ser orientada e tem que ter apoio para lidar com a situação e suas consequências, senão ela não vai aprender a lição, e não vai nos contar uma situação suspeita ou perigosa uma segunda vez.
E a gente tem que lembrar de que isso é agora. Com a velocidade das mudanças, e inclusive o emergir do uso da inteligência artificial, em pouco tempo vamos ter outros dilemas e decisões a tomar. Questões éticas já surgiram na minha casa, como por exemplo, até onde é certo usar o Chat GPT para fazer a lição de casa (vários colegas usavam a inteligência artificial para seus afazeres escolares). E tem adultos, pais e mães, que nem sabem o que é o Chat GPT! Dá para entender a extensão da encrenca? Não é exagero. Um problema complexo não tem soluções fáceis. A gente tem que mergulhar nele.
Como fazer?
- Estabeleça regras e horários,
- Verifique a classificação indicativa para a faixa etária, e se o jogo, aplicativo ou programa está adequado à maturação mental e emocional da criança
- Estimule outras atividades, como esportes, jogos de tabuleiro, contato com a natureza.
- Observe sinais de alerta para dependência para intervir precocemente, se ocorrerem,
- Denuncie jogos ou atividades que coloquem em risco ou sejam inadequados às crianças e adolescentes,
- Aja em defesa da infância, pois as crianças e adolescentes são considerados por Lei como prioridade absoluta como sujeitos de direitos.
Quando os filhos são bem pequenos, este é o melhor dos cenários, porque você pode começar “do começo”, literalmente. Não expor, decidir com mais propriedade e segurança qual é a idade que o seu filho vai ganhar um celular, quanto tempo vai usar e onde, o que vai acessar e assistir.
Seus filhos já são maiores, são adolescentes? Tenha tempo com eles, ouça-os, pergunte do que gostam, se interesse pelos conteúdos que assistem. Mas, cuidado, isso pode ser perigoso: você vai ficar chocado, nervoso. Não recue, pelo contrário, não se esquive, e entre no jogo, seja forte e corajoso, aprenda a conversar sem dar sermão, sem julgar. Pergunte o que não gostam, tenho certeza de que aprendemos muitas coisas novas com eles. Aguente a oposição, faz parte dessa fase, faz parte da vida. Eles já têm voz própria e podem propor soluções.
Seja razoável, desça do pedestal, informe-se e proponha soluções factíveis, sem impor, assim a colaboração tende a ser maior. Mas isso não vai acontecer em uma conversa só, como se fosse uma aula. Eles odeiam isso. São várias conversas, é um processo de reconexão, de conhecimento. Seja gentil, respeite as diferenças, criem combinados e regras que todos têm que cumprir. Comece com o celular fora da cozinha nos horários das refeições, aqui em casa isso deu certo.
Se eles estão há muito tempo nas telas, já sofreram essa grande influência e têm opiniões próprias que não são iguais às nossas. E a gente odeia isso. As nossas soluções dos anos 80 não servem mais. Mas o amor e o diálogo sempre funcionam. O amor cura todas as feridas, é o que temos de mais importante. Podemos salvar uma geração com essa reconexão, eu acredito nisso. Por isso eu deletei a culpa e o medo, que não jogam no mesmo time da solução dos problemas.
Para terminar
Se seus filhos são de qualquer idade, a conexão sempre pode ser restabelecida. Achar tempo para a conexão com Deus, criar tempo para a família e para os relacionamentos, cultivar o afeto, o contato com a natureza, com as nossas necessidades, ouvir o nosso corpo, ter conversas amorosas mesmo em situações desafiadoras são o melhor caminho. Se precisar, busque e peça ajuda.
E isso não é sobre uso das telas e tecnologias, pois vivemos conectados e elas nos ajudam. Mas é sobre a vida, sobre o plano original do Criador, que nos fez humanos para nos relacionarmos amorosamente com ele e com os nossos irmãos. As telas estão entre nós mas não precisam dirigir a nossa vida. E sempre, na calmaria ou na tempestade, ore e peça sabedoria a Deus, pois ele vai guiar as suas ações para o bem de todos.
Sugestões de leituras e consulta para saber mais:
Livro: Reset your child’s brain (Victoria Dunckley)
Livro: Detox Digital (Jacqueline Vilela)
Livro: A geração do quarto (Hugo Monteiro Ferreira)
Livro: A fábrica de cretinos digitais: Os perigos das telas para nossas crianças (Michel Desmurget)
Livro: A dependência de Internet em Crianças e Adolescentes: Fatores de Risco, Avaliação e Tratamento. Kimberly S. Young e Cristiano Nabuco de Abreu
Documentário: O dilema das redes (Netflix)
Artigo: Mais tempo, mais mediação parental. SAFERNET e dicas de segurança e mediação parental. Disponível aqui: https://new.safernet.org.br/content/mais-tempo-line-mais-mediacao-parental Acesso em 19/02/2024
Artigo: Saúde de crianças e adolescentes na era digital. Documento Científico da Sociedade Brasileira de Pediatria. Disponível aqui:
https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/publicacoes/19166d-MOrient-Saude-Crian-e-Adolesc.pdf Acesso em 19/02/2024
Artigo: Quem decide o uso de telas do seu filho é você. Portal Canguru News. Disponível aqui: https://cangurunews.com.br/quem-decide-os-limites-do-uso-de-telas-do-seu-filho-e-voce/ Acesso em 19/02/2024
Artigo: Internet: 95% das crianças e adolescentes estão conectados no Brasil. Olhar Digital. Disponível aqui: https://olhardigital.com.br/2023/10/25/internet-e-redes-sociais/internet-95-das-criancas-e-adolescentes-estao-conectados-no-brasil/ Acesso em: 17/02/2024
Artigo: Internet chega a 87,2% dos brasileiros com mais de 10 anos em 2022, revela IBGE. Ministério das Comunicações do Brasil. Disponível aqui:
https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2023/novembro/internet-chega-a-87-2-dos-brasileiros-com-mais-de-10-anos-em-2022-revela-ibge Acesso em: 17/02/2024
Artigo: Exposição excessiva de crianças em redes sociais pode causar danos. Agência Brasil. Disponível aqui:
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